A Folha de São Paulo, em sua versão online, divulgou uma matéria entitulada "Adolescentes desconhecem como funciona pílula do dia seguinte". Como é de se esperar quando estamos tratando com um veículo de tal importância para a imprensa nacional, imagina-se que a Folha cumpriria o papel de infomar aos adolescentes e demais interessados sobre o real funcionamento da chamada Pílula do Dia Seguinte.

Tal idéia não poderia estar mais errada, pois o que se lê na curta matéria é pura desinformação, o que não deixa de ser uma grande ironia para quem pretendia exatamente denunciar o desconhecimento por parte dos adolescentes do funcionamento da pílula.

Para começo de conversa, a Folha pega o dado de uma pesquisa da USP que ouviu 60 profissionais da área de saúde. Destes, 8.3%, apenas 5, declararam que a famosa pílula do dia seguinte é abortiva. A Folha, sabe-se lá por qual critério, tenta jogar sobre os menos de 10 por cento de profissionais da área a culpa pelo elevado índice de gravidez na adolescência. Literalmente, Gabriela Cupani, a repórter que assinou a matéria, afirma o seguinte logo no primeiro parágrafo:

"Apesar de o Ministério da Saúde disponibilizar a pílula do dia seguinte como um dos métodos para prevenir a gravidez na adolescência, na prática os jovens não conseguem tirar proveito desse recurso. Eles esbarram na falta de preparo de profissionais da saúde, que deveriam dar orientações."

Ou seja, a tal "falta de preparo", para a Folha, é o elevadíssimo número de por volta de 8% de profissionais que afirmam que a pílula é, sim, abortiva. Mesmo deixando de lado a questão de se a pílula é ou não abortiva -- que será tratado logo em seguida --, o fato aqui é que a Folha quer jogar para o colo da minoria o peso do problema da gravidez adolescente.

É mais ou menos assim: deixemos de lado a erotização cada vez mais cedo de nossas crianças, tal como já chamar de adolescente uma criança de 12 anos, por exemplo; deixemos de lado a desestruturação das famílias; deixemos de lado o fato de que os governos fazem nada para educar os jovens, estando muito mais preocupados em apenas "disponibilizar métodos" para que a indesejada gravidez não ocorra. Deixemos de lado tudo isto e muito mais, o grande problema mesmo são os malvados profissionais que "acham" que a pílula não é abortiva.

"Acham" porque segundo Fernando Lefèvre, um dos coordenadores da pesquisa da USP, ela não é abortiva:

"Muitos são contra porque desconhecem que ela não provoca um aborto"

O pesquisador da USP talvez esteja falando de algum tipo de pílula que está apenas em seu pensamento, pois o próprio fabricante afirma coisa bem diferente sobre seu produto:

"stopping a fertilised egg from attaching itself to the lining of the uterus"

"Fertilised egg" é um óvulo já fecundado. Ou seja, um dos efeitos da pílula do dia seguinte pode ser um aborto, exatamente como os 5 profissionais afirmaram aos pesquisadores. Na verdade, quem desconhece o efeito do medicamento é o sr. Fernando Lefèvre, que parece querer entender mais do que o próprio fabricante.

E pensando um pouco mais no assunto, fica difícil sustentar que a afirmação de que o medicamento não é abortivo seja fruto apenas de desconhecimento, pois uma simples busca pela internet mostra a claríssima afirmação que o medicamento pode ter o efeito abortivo. Será que a pesquisa tem dinheiro suficiente para entrevistar 300 "adolescentes" (vai entre haspas porque fica difícil chamar de adolescente um grupo de idade entre 12 e 20 anos) mas não arranja 1 mísero minuto para fazer uma pesquisa na internet?

Pergunta-se: o que leva então o pesquisador a afirmar categoricamente que a pílula não é abortiva? Mistérios... Pelo visto, há coisas mais importantes que o rigor científico na tal pesquisa.

No meio destes mistérios, porém, o que mais intriga é que um veículo como a Folha preste-se ao papel de contribuir para a confusão. A começar pelo absurdo de querer jogar no colo dos profissionais que tiveram a coragem e o rigor científico de afirmar que a pípula é abortiva, coisa que o próprio fabricante admite publicamente.

Um trabalho jornalístico muito mais digno de tal nome deveria exatamente checar os fatos que são afirmados pelos pesquisadores. Seria coisa simples, indolor e levaria bem pouco tempo. Mas mesmo isto não foi feito, simplesmente preferiram acreditar que a pílula não é abortiva.

Tudo bem, tudo bem... Até mesmo os melhores jornais do mundo cometem erros. Isto é verdade. Aliás, é para casos assim que os jornais sérios têm canais de comunicação com os leitores. No caso da Folha, há a figura do ombudsman, que facilita muito a interação entre as editorias e os leitores.

Pois bem, o ombudsman da Folha foi acionado para que ajudasse no esclarecimento sobre a questão da afirmação na matéria de que a pílula apenas "impede a fertilização do óvulo pelo espermatozoide", o que contradiz o fabricante do medicamento.

Era de se esperar que a Editoria de Saúde, frente à claríssima descrição do fabricante do efeito do medicamento informasse ao ombudsman e a quem fez o questionamento que haveria, no mínimo uma apuração mais aprofundada dos fatos, o que até seria desnecessário, dado que o fabricante afirma que o efeito abortivo é um dos que podem ser esperados.

Mas que nada! Em resposta ao ombudsman, a Editoria de Saúde afirmou que segundo o Ministério da Saúde, no documento "Anticoncepção de Emergência - Perguntas e Respostas para profissionais de saúde", a pergunta "A Anticoncepção de Emergência pode atuar como método abortivo?" é respondida de tal forma:

"Não existe nenhuma sustentação científica para afirmar que a AE seja método que resulte em aborto, nem mesmo em percentual pequeno de casos. As pesquisas asseguram que os mecanismos de ação da AE evitam ou retardam a ovulação, ou impedem a migração dos espermatozóides. Não há encontro entre os gametas masculino e feminino e, portanto, não ocorre a fecundação." (página 13)

Não há outro modo de falar o óbvio: o que foi escrito pelo Ministério da Saúde é contestado por ninguém menos que o próprio fabricante da pílula. Apesar disto, a Editoria de Saúde da Folha prefere acreditar em um documento do Ministério da Saúde do que no laboratório que pesquisou e produz o medicamento.

O Ministério da Saúde sabia bem do que estava falando, pois ao afirmar que "pesquisas asseguram que os mecanismos de ação da AE evitam ou retardam a ovulação, ou impedem a migração dos espermatozóides" isto quase literalmente reproduz o texto do fabricante, que na íntegra no site indicado acima diz o seguinte:

  • stopping or delaying the ovaries from releasing an egg
  • preventing sperm from fertilizing an egg you may already have released
  • stopping a fertilised egg from attaching itself to the lining of the uterus

O ministério apenas "esqueceu" de se referir ao terceiro item, justo o que trata de óvulos fecundados que são impedidos de serem implantados no útero. E na verdade o cuidado do Ministério em evitar o terceiro item é tão grande que posteriormente, no mesmo documento, o ministério didaticamente ensina que fecundação e concepção são conceitos diferentes na área médica. É difícil imaginar um tal preciosismo por parte do ministério caso o terceiro item elencado pelo fabricante lhe fosse realmente desconhecido.

Bem... Que o Ministério da Saúde se preste ao papel de "esquecer" afirmações do fabricante de um medicamento, é coisa que nem mais causa surpresa durante o Governo Lula. O que realmente causa surpresa (não, talvez, a muitos...) é que a Folha de São Paulo embarque nesta também, mesmo após alertada para o erro óbvio.