• Quando a realidade é mais forte que a ficção

Apreensão
de drogas, fugas espetaculares, contas secretas no exterior, políticos e
empresários presos e um país em transe. Nem o filme “Polícia Federal - A
Lei é para Todos”, que estreia nesta semana, foi capaz de superar o
enredo da Lava Jato


  • Quando a realidade é mais forte que a ficção


Se fosse preciso resumir em uma única frase a operação Lava
Jato, ela poderia ser a seguinte: a maior e mais espetacular
investigação da história do Brasil começou com a apreensão de um
caminhão carregado de palmito e resultou na queda de uma presidente da
República, na prisão de empresários e políticos graúdos e no
desmantelamento de um esquema de corrupção que movimentou dezenas,
talvez centenas de bilhões de reais. Por mais absurda que a descrição
acima possa parecer, ela corresponde à realidade. Não surpreende,
portanto, que a história tenha virado filme. No próximo 7 de setembro,
estreia no País a primeira versão da trilogia “Polícia Federal – A Lei é
para Todos”, que tem a ingrata missão de desbravar os labirintos da
Lava Jato. A tarefa é mesmo hercúlea. Inenarrável para ouvidos
desatentos, a Lava Jato fez ruir o PT, até então o maior partido do
Brasil, colocou na cadeia Eduardo Cunha, número 1 da Câmara dos
Deputados, encarcerou o empreiteiro bilionário Marcelo Odebrecht, além
de levar à condenação de Lula e de desfazer o mito em torno dele, para
citar os exemplos mais vistosos. Como retratar tudo isso no espaço
restrito de um filme? “A Lava Jato nasceu para o cinema”, diz o cineasta
Marcelo Antunez, também diretor das comédias “Até que a Sorte nos
Separe 3” e “Qualquer gato vira-lata 2.” Depois de assistir a “Polícia
Federal – A Lei é para Todos”, descobre-se algo mais revelador do que o
filme em si: no caso específico da Lava Jato, a realidade é mais
extraordinária do que a ficção.



A LEI É PARA TODOS O ex-presidente Lula foi conduzido coercitivamente para depor na PF do Aeroporto de Congonhas. Ele protestou dizendo-se “preso político”. O ator Ary Fontoura (acima) interpretou Lula no filme
A LEI É PARA TODOS
O ex-presidente Lula foi conduzido coercitivamente para depor na PF do
Aeroporto de Congonhas. Ele protestou dizendo-se “preso político”. O
ator Ary Fontoura (acima) interpretou Lula no filme

A apreensão do carregamento de palmito é uma das cenas mais
eletrizantes do longa, mas ela traz apenas uma fração de como foi o
episódio e o que ele representou de fato. A Operação Lava Jato surgiu
porque a Polícia Federal queria desmantelar quadrilhas lideradas por
quatro grandes doleiros brasileiros. Entre eles, Carlos Habib Chater, de
Brasília, que possuía uma casa de câmbio, um posto de gasolina e um
lava jato de automóveis. Por ordem do juiz Sergio Moro, a PF fez
demorada escuta em seus telefones, mas a investigação não evoluía.
Embora falasse com vários doleiros, Chater não citava nomes. Até que um
doleiro ligou e identificou-se como Beto. Ao ouvir a escuta, o delegado
Marcio Anselmo, de Curitiba, reconheceu a voz. Tratava-se de Alberto
Youssef, que Anselmo havia prendido em 2003, na Operação Banestado.



DOLEIRO DRIBLOU A PF Alberto Youssef iria ser preso em seu apartamento em São Paulo, mas ele fugiu do cerco dos agentes e foi parar em São Luís (MA), onde entregou uma mala de dinheiro
DOLEIRO DRIBLOU A PF
Alberto Youssef iria ser preso em seu apartamento em São Paulo, mas ele
fugiu do cerco dos agentes e foi parar em São Luís (MA), onde entregou
uma mala de dinheiro

No dia 21 de novembro de 2013, a PF desencadeou uma operação que
resultou na apreensão de 698 quilos de cocaína, na rodovia Washington
Luiz, nos arredores de Araraquara, no interior de São Paulo. A droga
estava escondida em meio a uma carga de palmito. A PF descobriu que a
cocaína foi paga com dinheiro de Charter, o que reforçou a denúncia do
envolvimento dele com o câmbio ilegal e o tráfico de drogas. Diante das
conexões entre Chater e Youssef, o juiz Sergio Moro mandou prender os
dois. Yousseff, lembre-se, foi o ponto de partida que levou aos desvios
na Petrobras. Depois disso, o enredo da Lava Jato começou a se aproximar
cada vez mais do ambiente político. Em pouco tempo, Brasília inteira
estaria desmoralizada.



O FIO DA MEADA Para desmantelar o maior esquema de corrupção do País, o juiz Sergio Moro ouviu mais de 300 acusados e milhares de testemunhas. Em quase quatro anos de operação, o depoimento mais conturbado foi o do ex-presidente Lula
O FIO DA MEADA Para
desmantelar o maior esquema de corrupção do País, o juiz Sergio Moro
ouviu mais de 300 acusados e milhares de testemunhas. Em quase quatro
anos de operação, o depoimento mais conturbado foi o do ex-presidente
Lula

O choro do delegado



A trama de “Polícia Federal – A Lei é para Todos” não faz jus aos
eventos impressionantes que se desenrolavam na vida real, mas causou
diferentes sensações nos personagens envolvidos. Na pré-estreia
realizada na semana passada, em Curitiba, o delegado Márcio Anselmo,
aquele que reconheceu a voz de Youssef na gravação telefônica,
emocionou-se ao se ver retratado no cinema. Em uma das cenas em que
aparece, Anselmo chorou. “É que ele achou que fosse Titanic”, brincou o
também delegado Maurício Moscardi. Durante a exibição do longa, os
juízes Marcelo Bretas e Sergio Moro, figuras centrais da operação,
permaneceram impassíveis enquanto saboreavam uma porção generosa de
pipoca. A plateia formada principalmente por procuradores, delegados e
juízes não resistiu a duas cenas. A sala 5 veio abaixo quando o japonês
da federal, famoso por aparecer em um sem-número de prisões realizadas
pela PF, surge na tela. O ator Ary Fontoura também arrancou risos ao
imitar a voz e os trejeitos do ex-presidente Lula. No final, embora o
filme não seja nenhuma obra-prima, ele foi aplaudido de pé pela plateia.
Ninguém, porém, foi mais reverenciado do que o juiz Moro, que tem se
acostumado a ser recebido assim em eventos públicos.



PRISÃO DO PRÍNCIPE A prisão de Marcelo Odebrecht, conhecido como “o príncipe”, foi um divisor de águas: com ele foram obtidas provas que desmoronaram o cartel das empreiteiras
PRISÃO DO PRÍNCIPE
A prisão de Marcelo Odebrecht, conhecido como “o príncipe”, foi um
divisor de águas: com ele foram obtidas provas que desmoronaram o cartel
das empreiteiras

É sintomático que um País tão machucado por denúncias de corrupção
quanto o Brasil aguarde com ansiedade a estreia nas telas de um filme
que tem a Lava Jato como inspiração. Segundo o cineasta Marcelo Antunez,
“Polícia Federal – A Lei é para Todos” chegará a 1.000 salas de cinema.
Para efeito de comparação, o longa “Tropa de Elite”, um dos maiores
sucessos da história do cinema nacional, foi exibido em 500 endereços. A
Lava Jato não só tem colocado corruptos nas cadeias. Um de seus efeitos
notáveis será a profunda transformação do País. Graças a ela, o próprio
sistema político vem sendo questionado e, também em decorrência de seus
desdobramentos, as grandes corporações ficaram mais atentas a desvios
de conduta.


Na semana passada, ISTOÉ entrevistou cerca de 30 personalidades
brasileiras para ouvir o que tinham a dizer a respeito da Lava Jato. É
quase um consenso que ela representa uma oportunidade única para o País.
Com a Lava Jato, quebra-se o tabu que prevalecia na sociedade
brasileira de que a lei penal só existia para os pobres”, diz o jurista
Miguel Reale Júnior. Para o médico Claudio Lottenberg, presidente do
UnitedHealth Group Brasil, “sua grande contribuição é o resgate de
valores em um País que precisa de honestidade e transparência.” Segundo o
publicitário Nizan Guanaes, o mais importante é o legado que a operação
deixará. “Não conheço país emergente que esteja fazendo uma lição de
casa tão importante quanto a nossa.” A opinião é compartilhada pelo
empresário Carlos Wizard. “Depois da Lava Jato, o Brasil tem tudo para
decolar.” Os elogios vêm de todas as áreas. “A Lava Jato é a porção
redentora da Justiça brasileira”, diz a jornalista Marília Gabriela.
“Ela é uma luz no fim do túnel”, afirma o apresentador Jô Soares. O
grande sentimento da sociedade é que a Lava Jato não vai – e não pode em
hipótese alguma – parar.



MESTRE DO POWER POINT O procurador Deltan Dallagnol, um dos principais investigadores da Lava Jato, ficou conhecido pela riqueza de dados expostos em suas apresentações
MESTRE DO POWER POINT
O procurador Deltan Dallagnol, um dos principais investigadores da Lava
Jato, ficou conhecido pela riqueza de dados expostos em suas
apresentações

A Fuga de Youssef



A Lava Jato não é apenas espetacular pelo que representa. A estratégia e
as ações da PF foram elas próprias cinematográficas. Por ironia, o
filme não consegue traduzir nas telas a fortuna dos acontecimentos
reais. Tome-se como exemplo o cerco a Alberto Youssef. Apesar de o filme
representar a prisão de Youssef como uma tentativa de fuga, que não
existiu, o caso teve contornos dramáticos que superam qualquer ficção. O
juiz Sergio Morou determinou que Youssef fosse preso no dia 17 de março
de 2014, uma segunda-feira. No domingo anterior, agentes da Polícia
Federal constataram que ele estava no apartamento em um bairro nobre de
São Paulo e depois retornaram para o hotel onde passariam a noite. No
dia seguinte, por volta das 6h da manhã, voltariam para prender o
doleiro. Desconfiado de que estava sendo monitorado, Youssef desligou os
celulares e foi para o Aeroporto de Congonhas, onde havia um jatinho à
sua espera. Ele ficou no ar por quatro horas e chegou a São Luís,
capital do Maranhão, no início da madrugada. Só então ele religou os
celulares. O delegado Marcio Anselmo fazia o monitoramento dos telefones
de Youssef em Curitiba. Quando viu no sistema que Youssef estava longe
de São Paulo, enlouqueceu. Anselmo esbravejou contra os agentes que o
deixaram sair do apartamento sem vigia.



HORA DE RELAXAR O juiz Sergio Moro (à dir.) assiste à pré-estreia do filme sobre a Lava Jato dividindo pipoca com o juiz Marcelo Bretas
HORA DE RELAXAR O juiz Sergio Moro (à dir.) assiste à pré-estreia do filme sobre a Lava Jato dividindo pipoca com o juiz Marcelo Bretas

Para encontrar Youssef, o delegado telefonou para vários hotéis de
São Luís. Numa derradeira tentativa, o encontrou no Hotel Luzeiros.
Antes de ser preso, Youssef precisava concluir o trabalho que o levou
àquela cidade: entregar uma mala com R$ 1,4 milhão em propinas a João
Abreu, chefe de gabinete da governadora Roseana Sarney. Fez isso em um
dos quartos do hotel e esperou tranquilamente a PF chegar às 6h, quando
foi preso. Convenhamos: os episódios descritos acima não parecem cena de
cinema? É uma pena que o filme não apresenta tamanha riqueza de
detalhes. O longa também comete o pecado de ignorar o passado de
Youssef. Em 2003, ele foi preso no caso Banestado e fechou um acordo de
delação premiada. Tempos depois, voltou a praticar os ilícitos que o
conduziram ao escândalo da Lava Jato.


Preso, Youssef levou a Paulo Roberto Costa, diretor de abastecimento
da Petrobras com quem fazia negócios escusos. A história de Costa é
igualmente cinematográfica. Foi ele quem revelou em detalhes o
funcionamento do cartel de empreiteiras que fraudavam licitações da
Petrobras, além de citar nomes de políticos beneficiados com propinas
milionárias. Uma história pouco conhecida do público foi retratada no
filme. Enquanto ainda negava a prática de atos ilícitos, o ex-diretor
ordenou que familiares destruíssem documentos comprometedores. Os papéis
foram queimados em uma churrasqueira. No longa, os agentes da PF
encontram, nos restos do fogo, papéis intactos que levam até uma conta
secreta na Suíça. Na realidade, foram achados vestígios de documentos
queimados. O filme, porém, ignora o aspecto mais importante: em sua
delação, Costa contou como funcionavam os cartéis na Petrobras, os
valores que eram destinados aos políticos, deu detalhes preciosos do
envolvimento do PT, PP e PMDB no esquema e enumerou mais de 15
empreiteiras que participavam da engrenagem de corrupção. Foi a partir
disso que a Lava Jato desmantelou uma fábrica de propinas da Petrobras
que desviou mais de R$ 40 bilhões dos cofres da estatal para o bolso
sujo dos políticos.


Como o filme é contado sob a ótica da polícia federal, o juiz Sergio Moro tem um papel secundário e seu personagem sequer tem nome


Apesar de falhar em reproduzir os meandros da Lava Jato, o filme traz
cenas saborosas. A prisão do empreiteiro Marcelo Odebrecht é uma delas.
Ao receber os policiais em casa, o personagem os alerta: “Cuidado com
tapetes e móveis, porque eles são novos.” A frase realmente foi dita aos
agentes, que lembram que Odebrecht, na viatura e já sob as garras da
Justiça, queria orientá-los sobre qual caminho seguir para fugir do
trânsito. “Marcelo Odebrecht foi preso exatamente com aquela postura de
quem achava que logo seria solto”, diz o delegado Igor de Paula,
delegado-chefe dos investigadores da Lava Lato. De novo, porém, o longa
falha em retratar a real dimensão dos personagens. A apreensão do
celular de Odebrecht foi o fio condutor de um esquema sem precedente no
Brasil. Somente um longo trabalho de perícia permitiu acessar o conteúdo
do aparelho. Com as informações contidas ali, descobriu-se, entre
outras preciosidades, que a empresa contava com um “setor de operações
estruturadas”, eufemismo para o departamento da Odebrecht destinado a
pagamentos de propinas.



Em Curitiba, cidade que foi tomada por R$ 4 bilhões falsos como marketing para divulgar o longa
Em Curitiba, cidade que foi tomada por R$ 4 bilhões falsos como marketing para divulgar o longa

A primeira parte da trilogia sobre a Lava Jato decepciona quando
trata dos dois personagens mais simbólicos da operação: o juiz Sergio
Moro e o ex-presidente Lula. Por razões inexplicáveis, Moro surge nas
telas em breves momentos, enquanto o filme termina com a condução
coercitiva de Lula. Graças a Moro, 157 pessoas foram condenadas a 1.563
anos de prisão. O juiz autorizou 158 acordos de delação, que acabaram
por implodir a corrupção sistêmica na Petrobras. Como o filme é contado
sob a ótica da Polícia Federal, Moro tem papel secundário, e isso de
certa forma deixa a obra desconectada da realidade. Acredite: o
personagem sequer tem nome, uma injustiça que precisa ser corrigida nas
duas próximas sequências da trilogia. Ao que tudo indica, Lula e seus
desvios também serão abordados com maior profundidade. Mesmo assim, é
possível vislumbrar o personagem canastrão. “Vocês ainda vão me pedir
perdão de joelhos”, disse o ex-presidente em discurso no Recife. Na vida
real, Lula foi ainda mais irresponsável. Peitou autoridades (para ele, o
procurador Deltan Dallagnol não passa de “um moleque”), disse que a
Lava Jato era palhaçada e, depois da delação do senador Delcídio do
Amaral, referiu-se a ele como imbecil e idiota. Agressões como essas não
deixam dúvidas: no caso da Lava Jato, a realidade dá um banho na
ficção.



PROTAGONISTAS Os atores em frente ao prédio da PF em Curitiba: orçamento de R$ 15 milhões
PROTAGONISTAS Os atores em frente ao prédio da PF em Curitiba: orçamento de R$ 15 milhões

Luz, câmera e ação


> O filme “Polícia Federal – A Lei é para Todos” tem cerca de duas horas e dez minutos de duração


> A produção do longa custou R$ 15 milhões


> Os financiadores do filme não querem ser identificados e não contaram com leis de incentivo à cultura


> As gravações começaram em novembro de 2016, mas o trabalho de pesquisa teve início um ano antes


> A Polícia Federal deu apoio e suporte logístico para a produção,
com filmagens em finais de semana na sede da Superintendência da PF em
Curitiba


> A produção contratou centenas de figurantes em Curitiba, que receberam cerca de R$ 50 por dia de gravação


> O filme estreia no dia 7 de setembro e tem direção de Marcelo
Antunez, com produção de Tomislav Blazic. O elenco é composto por
artistas como Antonio Calloni, Flávia Alessandra, Bruce Gomlevsky, João
Baldasserini, Marcelo Serrado, Rainer Cadete e Ary Fontoura


> Foi Inspirado no livro homônimo de autoria de Carlos Graieb e Ana Maria Santos


> Haverá ainda outros dois filmes sobre a operação. O segundo já
em desenvolvimento e abordará eventos ocorridos após março de 2016, como
as delações de Marcelo Odebrecht e da JBS, além da prisão do
ex-governador Sérgio Cabral


O que é a Lava Jato para você?